Mês e meio depois do cerco policial ao Teatro Capitólio, antes e durante o debate entre os candidatos Luís Montenegro e Pedro Nuno Santos, o Departamento de Investigação e Ação Penal arquivou o caso sem fazer uma só diligência. Vale a pena reproduzir parte das extraordinárias conclusões. “No local não foi possível apurar quem seriam os promotores de tal manifestação. Da mera leitura do auto de denúncia [preenchido pela PSP…!] é patente a inexistência de indícios que permitam conduzir à identificação dos autores daquela factualidade, não tendo sido identificado qualquer promotor ou manifestante (..), o que se traduz na impossibilidade prática de diligências de inquérito com vista à sua identificação”.

E assim, sem vestígio de pudor, sem qualquer noção da responsabilidade e exuberante má-fé, o Ministério Público (MP) enfiou na gaveta a primeira grande ameaça ao Estado de Direito conduzida por aquilo que nos habituámos a designar por “forças da ordem”; mas que, como se vê, não hesitam em usar o poder que o Estado lhes atribui para reivindicar os seus direitos profissionais. Recordo que antes desta poderosa exibição de força um dirigente sindical já ameaçara boicotar as eleições de 10 de março.

A situação é grave. Do ponto de vista das corporações, a maior ameaça ao Estado de Direito há muito que não vem dos militares. O Almirante Gouveia e Melo passeia a sua romântica altivez a bordo da farda da Marinha, mas, na verdade, não apenas as armas são escassas e velhas — muitas sofrem de obstipação crónica —, como os militares foram reduzidos a uma sombra do que já foram em número, coesão e peso na sociedade portuguesa. O espaço que ocupavam está agora nas polícias.

Já sei que o alerta contra a extrema-direita cai em saco roto. Convém, no entanto, notar que as polícias estão de facto infiltradas por estas correntes que têm como porta-voz o Chega e André Ventura. É evidente que o fascismo histórico não voltará, não vamos admirar o Ventura de braço estendido no Terreiro do Paço; contudo, a versão 2.0 da extrema-direita — uma versão com fabulosos recursos e armas digitais — está a fazer a sua paciente caminhada rumo ao poder. Em Itália, já lá está e outros países vão seguir-se.

A desvalorização do que está à vista é, por isso, um erro histórico imperdoável. O MP, dentro da sua diversidade, agora optou por tornar-se cúmplice. Como é sabido, o 25 de Abril aconteceu também por razões de carreira, no caso dos militares, embora as motivações fossem muito mais profundas. Desta vez, não haverá revolução nem cravos perfumados — a grande golpada está em curso a céu aberto e já nos habituámos ao fedor.